sábado, 4 de outubro de 2008

Cai O Pano .


As minhas mãos ganhavam sempre a mesma textura escorregadia, os meus pulmões enchiam-se de ar e o coração acelerava, sempre do mesmo modo. O pano vermelho, em frente aos meus olhos, subia lentamente, os meus olhos ofuscavam com as fortes luzes e os meus ouvidos ensurdeciam com os aplausos, sempre eufóricos e majestosos. Sentia-me uma criança ali, inocente e cheia de receios, e ao mesmo tempo, invencível, sentia que o mundo estava ali, rendido aos meus passos de dança, concentrado nos aplausos que eram somente meus.O palco sempre fora a minha casa. Todos me conheciam, e eu não conhecia ninguém, desde que me lembro que era assim, e não me importava, de facto, era feliz. No palco, tudo fica diferente, os rostos desvanecem e a única visão que tenho são mãos que batem por mim, que me abraçam em euforia, que me veneram pelos passos de dança e me têm como exemplo.
Um dia, antes de um espectáculo, Dona Arminda, a velha empregada de limpeza do meu camarim, contou-me que vista da plateia eu era ainda mais bonita. Disse-me que os meus olhos ficavam verde-água, que a tez da minha pele se tornava mais morena e que os meus passos bailavam em harmonia com o coração e as lágrimas do público. “Tenho saudades do menino Tomás, lembro-me tão bem da sua cara de felicidade quando dançava com ele.”.

Era o espectáculo de sexta-feira à noite, o mais importante da semana. As minhas mãos estavam escorregadias como sempre, apesar de tantos anos de prática, a insegurança era uma visita constante. Como sempre, o pano subiu, os focos de luz acenderam-se, e uma enorme coluna atrás de mim gritou o meu nome: “Gabriela Menezes”. Os aplausos eram mais fortes do que nas outras noites e sentia o palco vibrar ao seu ritmo por baixo dos meus pés descalços, prontos para mais uma dança. A orquestra começou, os olhos do público fixaram-se nas minhas pernas elegantes e o espectáculo desenhou-se ali, em frente aos corações e olhos brilhantes daqueles três mil que eu nunca havia visto, daqueles que nada eram para mim para além de aplausos, daqueles a quem eu não conhecia sequer o rosto ou a voz. Ali, rodeada de luzes que escondiam os meus olhos do mundo, sentia-me invencível outra vez, como em todas as outras noites, como se o mundo estivesse ali rendido aos meus passos de dança.
Pé esquerdo à frente do direito e braços esticados: Eu sabia-o, desde que me lembro que era assim, mas naquela noite tudo foi diferente, lembro-me do som da orquestra desvanecer ao longe e do meu corpo cair suavemente no soalho do palco, lembro-me dos focos brilharem mais e das mãos a aplaudir se evaporarem ao longe. Num estalar de dedos eu ainda dançava e ainda tinhas as mesmas pernas elegantes, mas agora o palco era outro, não haviam focos, nem panos vermelhos, nem aplausos sem rosto. Tudo estava branco e sereno, a música era doce e os passos, mesmo sem vinte e uma horas de ensaio diários, saiam perfeitos e em harmonia. Lembro-me de não ver motivo para parar de dançar ali, lembro-me de serem os meus mais perfeitos passos de dança e de as minhas mãos não estarem escorregadias, lembro-me de me sentir uma criança inocente e de ter deixado a Gabriela invencível no palco de madeira, lembro-me de avistar, ainda que meios desfocados, ali perdidos nas luzes brancas, o rosto de Dona Arminda e de Tomás, os únicos que alguma vez conheci no meio dos aplausos do meu velho palco, os únicos rostos que alguma vez derramaram lágrimas verdadeiras ao ver-me dançar.

2 comentários:

Anónimo disse...

Lindo, Vera, lindo!

Eu já fui uma bailarina, uma Gabriela, uma das invencíveis que não conhecem os rostos e que sentem borbuletas no estômago antes de entrar em palco...

Hoje, não sou nada disso mas ainda me lembro bem da magia do ballet, é algo que nos marca e nunca nos deixa...

Gosto muito de ti, Vee :)

Beijao @

R. Branco disse...

Amei este texto amor, nunca me dizes quando actulizas e depois não sei :(
Está mesmo bonito :)
Always&Forever